Texto escrito em tempo real durante o concerto de Rodrigo Brandão, Rodrigo Amado, Carla Santana, Hernâni Faustino e João Valinho, a 10 de setembro de 2020, no lançamento da Afárá – Realizações Artísticas, na Casa do Capitão, em Lisboa.
*As citações são passagens da performance do Rodrigo Brandão a quem agradeço a autorização para que fizessem parte deste texto.
Fotografia de @camiranda
Uma brisa suave, leve. Fresca.
Entre as mesas vazias, as cadeiras cheias de sorrisos. Sentados. Dispersos.
Cinco guiados sem rumo. Destino incerto.
A voz que a pouco e pouco lhe revira as entranhas.
É difícil manter-se concentrada, entre pensamentos dispersos. As escadas em caracol, castanhas da ferrugem, verdes do tempo que as invadiu. Subir e descer a espiral. Ao cimo uma porta aberta e seis janelas fechadas. Fecham-se as janelas, abre-se uma porta.
Possantes e intensos. Pequenos passos que se dão em direção à incerteza. Gritos altos que nos invadem e nos retiram o fôlego.
“Bem vindos, senhoras e senhores, a 10 de setembro. Esse é o som do espírito do dia. Do dia de hoje e de todos os dias de hoje… Mataram João Sem Medo…”.
A voz. Aquela voz que lhe transmite a revolta que se apodera e instala. Ela escreve. Ele mantém-se fiel às palavras ditas. Está inquieta. Irrequieta.
Sentada, a caneta não acompanha a velocidade a que processa a informação. O 10 de setembro, entra, dói, reflete-se, emaranha-se, corre.
“Salvé”. Respira. “Em 10 de setembro de 1974, a Guiné-Bissau ganha independência de Portugal. O que nos leva a hoje, 10 de setembro de 2020”.
Ela deixa-se levar. Quando se fecham seis janelas, abre-se uma porta. Quando de pé descalço se aproxima, a caneta pára. É desconcertante. Intenso.
Veias saídas. Das mãos aos braços. Do pescoço à testa.
Latejam.
Gritam.
Varandas vazias, ecos. Silêncios no meio de sons. Olha em volta e absorve. Entre Portugal e o Brasil.
Quente, ritmado, coeso.
Ela volta à história. Perdera-se entre pensamentos desviantes e vozes sonantes.
Deambula sentada, amarrada à nova realidade. Vibra, revibra.
Grave, treme-lhe o chão debaixo do corpo. Vibra, revibra. E o chão foge-lhe debaixo dos pés.
O comboio vai e vem. Não pára. É TGV.
Vai e vem, incessante. Pára à frente dela.
Semi-nua. A saia branca esvoaça em frente ao comboio batido pelas ondas do mar.
Semi-nua. Pés feridos na linha. O ardor da água do mar. Caminha, atravessa. Mergulha sem ver o fundo, sem ouvir um único pássara a voar. Deixa-se levar ritmadamente até à Casa do Capitão. Voltam as cadeiras cheias e as mesas vazias. Sobe ao farol pela escada em caracol.
Fecham-se seis janelas, abre-se uma porta. Enrola-se numa toalha e despede-se do coração. Bate acelerada. Descompassada. Falta-lhe o ar.
10 de setembro de 2020. Na Casa do Capitão. Quem está reage, quem não está, estivesse.
A morte, a dura morte. O preto por baixo do branco. “Bruno Candé, presente!”.
O ar aperta. Trespassa. Repensa. Pára a história. Ouve amarrada à cadeira.
Mata que mata. Dói que dói. “Vai virar memória de ninguém… Vai sumir na poeira da história”.
Ela passou. Ouviu. Dói que dói.
Recompõem-se e volta à história. Volta à bruta realidade. A escada em caracol. Sobe. A porta fecha-se.
Sentada numa espiral suspirou. Afárá começou.
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