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O silêncio descompassado do breve murmúrio do mar

Atualizado: 7 de jan. de 2021

Músico convidado: Hernâni Faustino (Contrabaixo). Solo live @SMUP

Fotografia: Ricardo Leiria



(Aproveito para deixar uma palavra de apoio a todas as mulheres vítimas de violência. Que os números deste ano não continuem a crescer)


Serena, pacata, de corpo rijo e silenciosa. Jazia entre pedras e rochedos num murmúrio breve do mar.

Entre cordas e suspiros, entre azul e grená.

Por breves momentos ofegante e ritmada.

Sim, ela era breve. Breve em sonhos e aspirações, demorada no toque subtil de fugida.

A manhã anunciava-se e o cheiro fétido do corpo dela sobrepunha-se ao da maresia.


A calma da noite. O medo do escuro. O fim.


Facadas.

Facadas.

Facadas.


Foram dezenas de facadas.


Foram facadas dadas por amor num impasse momentâneo da loucura do outro.

Secas, duras e curtas.

Outrora bela.

Outrora sedutora.

De sorriso fácil e alma dançante.


Eram quatro da madrugada quando os passos acelerados anunciavam a pressa de chegar a lugar nenhum.

Parava por breves segundos para inspirar o ar frio da noite.


Facadas.


O barco atracado perto da doca rangia com a maré e oscilava suavemente.

Ela marcava passo. Um atrás do outro numa tentativa frenética de chegar a lugar nenhum.

Eram quatro da madrugada quando em passo de corrida ele se aproximava dela.

Ele. Encorpado. Louco de ódio. Louco. Ponto.

Numa corrida enfurecida pelo ciúme.


Pouco faltava para chegar perto dela e começar lentamente a desferir-lhe duros golpes na alma e na carne.

A alma já não sentia. O corpo começava a deixar de sentir. Entre dormência e movimentos bruscos o corpo mexia descompassadamente.

O vestido branco tingia-se de vermelho e ela, em absoluto silêncio, mantinha os olhos fixos no horizonte.

Ele dopado de adrenalina ria baixinho enquanto a deitava entre pedras e rochedos.

Saiu em passo firme e assertivo.


Esperava-o uma manhã atribulada. A cabeça gritava de loucura. As imagens repetiam-se umas atrás das outras.

O vestido tingido de vermelho fazia-o sorrir.

Quase mudo mantinha-se agarrado às memórias. Muitas. Umas atrás das outras.

E não conseguia conter a saudade. A saudade de vê-la correr descompassadamente. A saudade do medo. Uma espiral angustiante de poder.


Eram quatro da madrugada.

Eram quatro da madrugada quando ela, esventrada, se mantinha serena e pacata.

Sem um único grito.


Maria.

Maria foi, durante trinta e quatro anos, o seu nome.


Ela dizia que tinha vivido trinta e morrido nos últimos quatro. Tinha perdido a língua aos trinta e um, tapado os ouvidos aos trinta e dois, secado as lágrimas aos trinta e três e fechado os olhos aos trinta e quatro.


Trinta e quatro.

Eram quatro da madrugada.

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