Obra: Dromofonia
Compositor: Vítor Rua
Texto: Margarida Azevedo
Fotografia: Ricardo Leiria
Uma profunda e terrível solidão. Uma manta encostada à parede é a única coisa que nos lembra que alguém costuma por ali pernoitar.
Saudade.
Um sustenido de saudade.
A solidão não é mais que a ausência de som. Que a ausência do vibrar das cordas vocais.
No quarto mantém-se deitado. Deitado de pernas ligeiramente fletidas, barriga para cima. As mãos, envelhecidas, pairam no ar e acompanham, como se de um maestro se tratasse, a fluidez das notas musicais que lhe ecoam na cabeça.
A mesma cabeça que está confusa.
A depressão instalou-se. Veio para ficar. Mas é ao longo daquela hora, em que as mãos pairam no ar, que organiza, passo após passo, o seu caos interior.
Nada.
Absolutamente nada o faz parar aquela metódica organização de ideias.
Primeiro levanta-se.
Depois passa a mão húmida pela cara.
Um duche? Não.
Um duche fá-lo-á ter ideias suicidas. O som da água, leva-o para um mar revolto em dias de temporal.
Pára.
Pára de se organizar interrompido pelo som imaginário de um duche.
Recompõe-se. Segue a linha da guitarra.
As mãos voltam a pairar no ar.
Volta ao início.
Primeiro levanta-se. Esquece tudo o resto.
Volta ao início.
Levanta-se.
Depois muda de roupa e veste o seu melhor casaco.
Acende um cigarro e sai.
Repara que deixou um passo em aberto.
Enquanto organiza o seu caos interior repara que se esqueceu de calçar os sapatos.
Volta ao início.
Levanta-se.
Veste-se.
Acende um cigarro.
Calça os sapatos. Prepara-se para sair. Mas não pode.
Parar de ouvir aquela guitarra é o mesmo que reentrar no caos e na solidão.
Levanta-se. Veste-se. Acende um cigarro. Calça os sapatos. Abre a porta.
E desiste!
O quarto continua a ser o seu caos controlado. Na verdade nunca se levantou. Continuou deitado de pernas ligeiramente fletidas e barriga para cima. As mãos repousam no seu tronco. Naquele “V” que os homens magros têm muito vincado que vai das ancas ao pénis como que a delinear um caminho que ali terminará.
A mente leva-o para o sexo. As mãos, essas, descem vagarosamente. Decide acariciar-se. Se há algo que pára o caos, além daquela guitarra, é o prazer.
A masturbação é a sua companheira. Andam de mãos dadas de tempos em tempos. Volta a organizar a mente.
Levanta-se.
Despe-se.
Usufrui.
Afinal não está assim tão só. Está simplesmente, prazerosamente, só. Volta a concentrar-se no som.
Reorganiza-se. Ouve a chuva lá fora. A chuva não é boa conselheira.
Deprime-o. A angústia quer voltar. O orgasmo desvaneceu.
Ela entra. Ele nu. Sorri. Dança subtilmente com as mãos a pairar no ar.
Ela ri. Sussurra-lhe um “estamos melhores hoje?”. Ele continua nu, enrugado, e ligeiramente fora de si.
Reorganiza-se.
Olha para a porta que acabou de se fechar após ela sair. Responde-lhe “Não vês que sim?” e solta uma gargalhada. Está só outra vez.
Olha em volta e repara que as paredes são demasiado brancas. Percebe onde está. Afinal tinha-se levantado, passado uma mão húmida na cara, vestido, acendido um cigarro, calçado e saído.
E o som da água. Ficou a um passo de ser um só com o Tejo.
Sobrou a terrível saudade de estar apenas só.
As mãos já não pairam no ar.
A guitarra, essa, calou-se.
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