Artista convidado: Gonçalo Almeida | Doublebass solo @ Soliloquios
Texto: Margarida Azevedo
Não - numa pausa de dois tempos.
Sim - num compasso a quatro tempos.
Não - numa semibreve.
Sim - já em semicolcheia.
Não. Sim - numa pausa de inquietação.
Era nesta indecisão que ela se encontrava. Num nim recorrente de incerteza. Numa vontade suspensa e asfixiada de sentir um pouco mais daquele vibrato dentro dela.
No calor do momento, na vontade irracional do querer.
Querer mais. Muito mais. E se existia momento em que ela sabia que querer não é poder, esse momento era aquele.
Nada fazia prever o desfecho. Nada fazia prever que um dia se pudesse arrepender.
Falava de forma ritmada e calma ao ouvido dele.
Aproximava-se do seu mundo e sussurrava-lhe palavras curtas e sem sentido.
Hoje.
Talvez amanhã.
Talvez amanhã os sussurros ecoassem entre a sua boca e o peito dele.
A voz grossa apelava a um diálogo agressivo. A voz meiga e melada fazia com que sentisse que podia ter o mundo aos seus pés.
Os carros passavam entre o silêncio acumulado das frases por dizer.
Rapidamente os olhares se cruzavam e a vontade de perceber o seu mundo fazia com que ela perdesse a noção do seu.
Duas da manhã. E sim. Os sussurros ecoavam entre a boca dela e o peito dele.
Três da manhã e a sua voz grave ressoava entre os seios dela.
Nada fazia prever.
Absolutamente nada.
A madrugada deu lugar à manhã. Entre lençóis de seda pretos e beatas de cigarros no cinzeiro as respirações aparentavam uma súbita calmia. As janelas, onde a condensação escorria, mantinham-se fechadas e os carros esses deixaram de passar.
Horas antes as mãos dele percorriam a pele branca dela.
Mãos marcadas pelo som, pela subtileza e pela firmeza. Percorriam-lhe a pele, milímetro a milímetro numa dança embalada pelo arrepio que lhe subia pelas pernas acima.
Entre toques leves e sensuais e uma agressividade consentida e exacerbada. Nada fazia prever.
Enquanto ela se aninhava entre os braços dele a respiração ficava, por breves momentos, suspensa. Suspensa numa oscilação entre o ofegante e o profundo.
Ele usava o seu timbre grave para a cada minuto manter a distância emocional. Ela usava a sua voz doce para se manter embrulhada no seu corpo.
Ele sabia. Ela não.
Na verdade ele sempre soube.
Que por mais rude que pudesse ser ela iria sempre, mas sempre, estar ali. Deitada, disponível, entregue ao sonho e ao momento.
Ela nunca soube. Nunca ponderou que aquela voz grave e deliciosa pudesse um dia desaparecer.
Os momentos eram mais intensos, mais demorados, mais próximos, menos sentidos, menos apaixonados, menos melodiosos.
Mas nada fazia prever.
Que numa noite quente de agosto, os pés nús anunciavam a distância e a incerteza.
Os passos acelerados de quem não quer estar mas não quer fugir.
As mãos suadas e possantes.
Um pequeno gemido no clímax do prazer. Breves momentos de incerteza em que ela numa espiral estonteante de paixão e atração se deixou levar até ao momento em que nada mais pode acontecer. Deixou de ouvir e ficou apenas focada no seu próprio corpo num ato egoísta de quem almeja chegar ao pódio sem olhar para trás.
Num ato físico descoordenado, em que pequenos espasmos moviam freneticamente as suas pernas. Dançavam. Os dois. Ele fixo no peito dela, ela de sorriso caído.
Nada fazia prever.
Que numa noite quente de agosto ele sonhara que ela estava ali como sempre à sua espera.
Sentou-se.
Esperou.
E viu-a desaparecer entre as memórias dum ligeiro sopro perdido.
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