É dia de estar em sociedade.
Chego demasiado cedo ao Hospital. Nos dias que correm, chegar cedo não é uma virtude. Ainda não me habituei a chegar em cima da hora.
Faço a admissão e esperam-me vinte longos minutos sentada a duas cadeiras de distância de alguém. Bastaram-me cinco minutos para o caldo entornar. "Ferves em pouca água" dirão alguns.
- Desculpe. Estamos muito atrasados para uma consulta. Pode atender-me?
- Tem de tirar uma senha e aguardar a sua vez.
Até aqui tudo normal, certo? Claro que sim. A pressa aliada ao atraso. Quem nunca?
Ela tem entre 40 e 45 anos, boca tapada pela máscara, olhos esbatidos e uma expressão corporal retraída.
Ele chega. Sem nunca retirar os óculos escuros.
Aproxima-se dela e pergunta se já a atenderam. A voz dele lembra-me os programas de televisão sobre vítimas. Aqueles em que se esconde a identidade de alguém. Aquela voz grave e distorcida.
Viria a perceber, nos três minutos seguintes, que os óculos e a voz escondiam a cobardia. Ele, sem nunca retirar os óculos escuros dirige-se a uma máquina de café. Sim, uma máquina que tem voz feminina quando o produto está esgotado.
E é precisamente essa voz que o irrita.
Meteu a moeda.
- Produto esgotado. - Ouviu-se a tal voz feminina e percetível.
Ele teimou. Mete a moeda, carrega no botão, "produto esgotado", retira a moeda. Em modo repetitivo mais de três vezes.
Pensei falar com ele. Dizer-lhe que a sua voz é genial. Que parece programada. Se já teria pensado gravá-la e usá-la algures numa performance artística.
Só pensei, e ainda bem.
Irritou-se com a máquina, com a voz feminina e repetitiva que lhe cuspia as moedas por um orífico mais abaixo.
Dirigiu-se à mulher de olhos esbatidos e corpo hirto, sem nunca retirar os óculos escuros.
- Ó minha estúpida de merda, ainda não foste atendida? És mesmo mulher e cona mole.
A voz e os óculos escondem o agressor. Ela envergonhada e com medo. Éramos cinco pessoas sentadas à espera. Apenas eu levantei a cabeça. "Entre marido e mulher não se mete a colher", errado!
Ela olhou para mim e os olhos esbatidos suplicaram que me mantivesse calada e quieta. O olhar falou: "olha que será pior para mim".
Levantei-me e caminhei até ele. Eu, mulher e possível cona mole. Caminhei de forma segura e de cabeça erguida. Por dentro o coração batia acelerado e a raiva borbulhava. Afinal eu só ali estava para ir a uma consulta de conas moles. Uma consulta em que seria penetrada por um bico de pato para verificar se a cona mole estava bem de saúde (uma consulta de ginecologia, portanto).
O cobarde, escondido pelos seus óculos de sol e a voz naturalmente distorcida, acelerou o passo até ao elevador e ignorou o meu caminhar confiante.
Dirigi-me à administrativa e disse-lhe:
- Triste que nenhuma cabeça se tenha levantado e incrível que a senhora tenha baixo a sua.
Acabei a entrar na minha consulta onde me apeteceu gritar "que as conas moles não baixem a cabeça aos cobardes dos óculos de sol".
Podia ser ficção, o triste é que não!
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