Nem sempre sei por onde começar. Talvez pela demora, ou então pelo momento em que finalmente peguei no livro e decidi que ia ser de empreitada.
Tenho A Instalação do Medo, de Rui Zink, desde 16 de junho de 2021. Decidi pegar nele e lê-lo “a sério” na última semana de julho de 2022. Sentada à sombra de mini na mão.
O Rui consegue que qualquer um de nós mantenha o sorriso no rosto enquanto percebe que vive, boa parte do tempo, subjugado ao medo. Em alguns momentos do livro senti-me verdadeiramente tola, mas atenção: tola no bom sentido se é que tal coisa existe.
A minha primeira página dobrada é a 40. E porquê? Porque me começo a rever a partir dessa página. O terror do primeiro dia de escola. O medo, a ansiedade, a inquietação. E no dia em que escrevo isto ainda me recordo do choro incontrolável no meu primeiro dia de escola. Escola essa que agora é do outro lado da rua onde vivo e que me parece muito mais pequena que há 30 anos atrás. Cá está a tal tolice que há pouco vos falava.
“As crianças não compreendem a crueldade dos pais (…) Mas há uma violência, um calafrio, uma traição, um trauma (…)”.
Fiquei rapidamente agarrada às páginas. Tem tanto de Rui Zink dentro deste livro. Já fui aluna dele e passagens como “A senhora sabe o que é um soneto, não sabe? (…) Um soneto é uma forma poética de catorze versos, criada no Renascimento (…)”, é como voltar às aulas dele em que damos uma gargalhada e logo a seguir estamos a aprender mais qualquer coisa, assim como quem nem dá por ela.
Ri-me muito — sim, sou dessas que ri destas coisas — com o facto de me aperceber com a leitura que sou demasiadas vezes dominada pelo medo e na verdade nem me apercebia assim tanto que vivia debaixo desta instalação constante.
O livro tem os apontamentos gráficos nos sítios certos. Apontamentos no texto que nos arrancam sorrisos matreiros e nos ajudam à leitura: “É estranho, agora que o Sousa parece falar em itálico: — Provavelmente vamos ter de sair da moeda única”.
Na página 114 soltei a verdadeira gargalhada. Comparar velhos a pombos e reduzir os velhos à posição que ocupam na atual sociedade. Só dão trabalho, despesa e “ao contrário dos pombos, nem para cagar uma estátua servem”. Velhos e crianças são dois pontos difíceis neste país. Onde os pôr quando estamos ocupados a ganhar uma ninharia nas 40 horas semanais de trabalho? O Estado não tem lares, nem creches, nem apoio suficientes para os nossos pais, nem para os nossos filhos. Mas isto agora também não interessa nada.
Continuando no livro.
Esta reedição teve alguma reescrita e “Oito mil milhões de humanos sobre a terra. Obviamente, algum tinha de acabar por comer um pangolim” deve ser um acrescento à edição de 2012 (não li essa edição). Se existiu momento em que a malta recebeu de porta escancarada a instalação do medo foi com a pandemia. Eu sei que recebi e ainda hoje penso em como os técnicos da instalação foram tão bons profissionais.
Numa próxima reedição virá uma nota sobre a varíola dos macacos ou outra ameaça qualquer que nos irá atormentar em breve, ou talvez não (a tormenta vai lá estar, o Rui é que pode não escrever sobre ela).
Nesta edição de 2021 a verdadeira tormenta está mesmo bem representada e o medo continua atual — os Mercados.
Gostei verdadeiramente deste livro de Rui Zink. Acho que daria uma excelente peça de teatro, mas isso ele já sabe ou não fosse ele quem o escreveu.
O ritmo de leitura é incrível, os diálogos em nada são monótonos e o humor é refinado e roça o sádico. Que mais se pode querer para este início de setembro?
Aproveitem que o autor vai estar este domingo, 4 de setembro, às 17h, no Pavilhão da Porto Editora, na Feira do Livro de Lisboa, em sessão autógrafos. Vão, sem medos!
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